quinta-feira, 26 de abril de 2012

Crônica do cotidiano


"Todo dia ela faz tudo sempre igual..." Talvez esta primeira frase dessa canção do Chico Buarque possa nos distrair um pouco, e nos afastar da ideia acerca do nosso cotidiano. Ou melhor, pode nos enganar quanto ao seu conceito verdadeiro. Se não vejamos: será que quando saímos de casa pra trabalhar, estudar, ou o que quer que seja, o nosso estado de espírito não influencia na construção desse "cotidiano"? A mulher à qual o Chico beija no final de cada estrofe da canção todo dia tem um gosto diferente na boca. E assim acontece sempre em nossos movimentos diários. 
            Podemos citar e sequenciar tudo o que fazemos, ou o que estamos predispostos a fazer durante a semana. "Bom, hoje depois que eu escovar bem os meus dentes pela manhã, vou sair de casa, entrar no carro, ligar o rádio e fazer o que eu tenho fazer". Mas e se o pneu do carro furar e eu ficar indignado? E se eu cair no chão e bater a cabeça enquanto escovo os dentes e for pro hospital? E se eu ouvir no rádio que ganhei na Mega Sena? A nossa vida nunca é igual. É pragmático e simplista se dizer que o cotidiano é o "diário". Podemos ter na nossa agenda mental o passo a passo das nossas tarefas. No entanto, não temos controle algum dessa rotina e da maneira que vamos nos sentir. Achamos que temos. Mas isso é pura ilusão.
            Dia desses, fiz aniversário. Sempre gostei de aniversários. Era uma sexta-feira, havia aula, tive que trabalhar... Fiz tudo que se faz no meu "cotidiano", como o conhecemos. Mas lhes garanto que não foi um dia típico. Tudo foi diferente. O gosto das coisas. O cheiro do ar. O carinho das pessoas. A ocasião me influenciou a me sentir diferente. Contudo, fiz tudo o que sempre faço. E engana-se o leitor se acha que me apeguei num sentimento não muito recorrente para reforçar essa tese. Sempre, sem perceber, estamos diferentes. Seja ainda porque nosso time do coração perdeu, ou porque conhecemos o amor da nossa vida na festa do último sábado.
            Cotidiano está longe de ser o conjunto de ações que fazemos todos os dias. Cotidiano são todas as emoções, sensações, e imprevistos que acontecem nos cenários que frequentamos desde o momento em que acordamos. E é isso que nos faz. É isso que nos tange. É isso que a nossa vida representa. Esse é o nosso cotidiano. Sempre beijamos a mulher, ok. Mas quem garante o gosto que sua boca vai ter? E acho que essa é a graça da vida: nunca sabemos se sentiremos gosto de feijão, paixão, hortelã, pavor ou café.

BS

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